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  • Carlos Miguel Pacheco

Memórias em solidão


"SONHOS PERDIDOS NO TEMPO" - PREFÁCIO.

Era mais uma dessas noites de Verão onde o calor do dia se tinha acumulado dentro de casa. Miguel preparou as cobertas da cama em cima do sofá onde dormia todas as noites, o mesmo local onde a falecida esposa tinha adormecido nos seus braços. A música continuava a tocar para completar o dia e para encher o vazio do silêncio que reinava na sua vida. Queria chegar ao fim de cada dia e sentir-se cansado o suficiente para não pensar demais, para evitar de reviver no pensamento as imagens desse adeus final.

Este novo contexto na sua vida tinha-o conduzido a interpretar a sua existência e a dos outros à volta de uma maneira diferente. Miguel tinha sido sempre impertinente e obstinado em relação a tudo aquilo que ele não podia compreender ou aceitar como fosse justo, quando não o era. Essa tendência tinha-o conduzido a um estado crónico que o levava a contradizer tudo aquilo que ele não considerava como racional ou humano em termos de comportamento e relacionamento, mesmo ao ponto de tentar contrariar o ciclo natural da vida através do seu comportamento. Foi nesse momento em que perdeu essa metade da sua vida, a outra metade da sua alma, que foi forçado a aceitar a realidade tal como ela se apresenta aos nossos olhos, como ela contunde os nossos sentimentos mais puros com as suas contradições e injustiças, contra as quais somos completamente impotentes, quando finalmente nos apercebemos que não podemos decidir sobre o nosso momento final apesar de representarmos uma peça fundamental da Criação.

Miguel vivia a terceira fase desse ciclo da vida e tinha passado por múltiplas experiências que tinham feito dele uma barreira impenetrável, onde só os eleitos pelo seu coração podiam entrar nesse mundo tão singular. O único momento em que se sentiu frágil e impotente, foi quando perdeu a sua companheira, a sua grande paixão, apesar de desde criança ter assistido aos momentos finais de vários membros da família. Miguel perdeu a vontade de viver, a vontade de vencer mais esta batalha que o destino lhe punha à frente, como se fosse um desafio à resistência que o Criador lhe tinha imposto viver. Nada mais tinha significado para ele, impedindo-o de sobreviver, de suplantar em completa solidão o período final da sua existência, o Outono da sua vida.

Quando se ia deitar no sofá, tinha em frente dele, o que para ele sempre tinha constituído uma segunda paixão. Dezenas de discos em vinil estavam dispostos por ordem alfabética e por estilo numa estante que ficava aos pés do leito. A antiga aparelhagem de som analógico com o tradicional gira discos, o amplificador e o gravador de banda magnética, davam a imagem da genuinidade deste pequeno cantinho.

Miguel sempre tinha associado a vida com a música, tal era a intensidade dessa dedicação. Os melhores e piores momentos da sua existência estavam ligados a sons e através deles podia reviver todas essas memórias, boas e más, uma maneira pessoal de existir e correlacionar momentos e acontecimentos. Quando os amigos o questionavam sobre esse amor pela música, ele respondia que a vida não é mais do que uma sinfonia à qual chamava ‘A Sinfonia da Vida’ e que o silêncio absoluto não existia porque até o silêncio tem o seu próprio som. À volta, todos partilhavam esse mundo tão diferente essa maneira particular de viver que estava associada a uma forma de sentir a vida, a natureza e as pessoas de uma maneira que não era usual encontrar, e fomentava a curiosidade de muitos dos amigos. Este espírito atraía aqueles que queriam partilhar essa dimensão individual em que vivia, muitos tentando alcançar e compreender esse estado de espírito.

O pequeno apartamento onde habitava há cerca de cinco anos era decorado no estilo canadiano, com as paredes revestidas em madeira, proporcionando o ambiente natural do campo, criando uma integração com as florestas que o rodeavam. Por estranho que pareça, Miguel tinha sempre mencionado o desejo de viver numa pequena cabana em madeira onde só a música, os livros e a companhia do ser que amava lhe seriam suficientes para se realizar pessoalmente. Infelizmente, o seu trajecto profissional tinha-o arrastado para um mundo diferente daquele que correspondia à sua simplicidade de espírito. Para ele, era como se a vida o tivesse escutado e lhe tivesse proporcionado este ambiente tão longamente desejado nesta fase da sua existência.

Nessa parede em madeira, por cima do gravador de banda magnética, estava a fotografia da filha na sua companhia. Nessa fotografia que datava de quase quarenta anos, pai e filha partilhavam esse mundo tão belo e precioso de música e de literatura. Um modelo idêntico ao do gravador de som também fazia parte dessa fotografia. Miguel tinha comprado este aparelho, semelhante ao que existia no passado, só para poder reviver no espírito esse antigo ambiente e tudo o que ele significava, o período em que tinha sido mais feliz, a época em que se pensa que se é invencível e eterno e que tudo e todos são bonitos.

No outro lado dessa mesma parede, estavam dispostas uma dúzia de fotografias da falecida esposa. Deste modo, mãe e filha estavam presentes na sua vida diária, apesar da distância trazida pela morte e por destinos diferentes. Dada a sua liberdade de espírito, Miguel tinha educado a filha num clima de liberdade total, deixando-a decidir por ela própria sobre o seu destino, mesmo a partir de uma tenra idade. Para ele, os nossos filhos não deviam ser criados para nós próprios, mas para o Mundo, o que implicava uma liberdade extrema de pensamento acompanhada por um respeito pela personalidade de cada um de nós. Nesta mesma perspectiva, Miguel teve de aceitar as decisões da sua filha que contribuíram para um afastamento real entre eles.

Dadas as injustiças da vida e esse respeito pela autodeterminação dos entes mais queridos, Miguel encontrava-se completamente sozinho neste Outono da sua existência. Restava-lhe viver as memórias e ocupar o tempo da maneira mais construtiva que lhe era possível, lutando contra os estados de espírito temporários que lhe traziam sofrimento e falta de vontade para continuar a viver.

Adormecia todas as noites levando com ele as memórias de todos estes fragmentos de tempo que lhe dominavam a mente e a alma. Estas imagens nunca o abandonariam dado que faziam uma parte intrínseca do seu espírito. Miguel também possuía uma memória muito consistente, ao ponto de se lembrar de mínimos pormenores da sua infância e adolescência, mesmo aqueles que se reportavam aos primeiros anos de vida. Miguel era um ‘sonhador’, como todos lhe chamavam. Era verdade que ele vivia como que perdido numa dimensão fora do tempo e longe da realidade que temos que enfrentar diariamente, e que às vezes nos faz sucumbir.

Tempo e espaço tinham um significado diferente para ele e precisamente por esse facto, Miguel contrariava a sua própria existência em termos de ciclo natural. Esse facto ajudava-o a superar situações que normalmente implicavam comportamentos adaptados às nossas idades, agindo como um jovem numa idade adulta ou como ‘jovem adulto’ numa idade em que normalmente já não existe mais nenhuma motivação, onde só se espera atingir a meta das nossas vidas. Essa força interior, essa energia que vivia com ele, era o que lhe restava, era a única chama que alimentava a sua vontade para continuar a construir para ele e para os outros, aqueles que ele elegia para fazer parte do seu percurso.

Quando adormecia, mergulhava em sonhos dos quais se lembrava quase na totalidade. Era como entrar e sair de mundos diferentes, de dimensões separadas, no entanto, fazendo parte de um ‘todo’ que nós ignoramos, mas que ao mesmo tempo reafirma a presença de uma continuidade existencial em que todos desejamos acreditar.

Naquela noite de Verão, adormeceu a pensar nos seus tempos de infância que datavam de mais de meio século. Antes de adormecer, quando fechava os olhos, afluíam-lhe imagens do passado e do presente numa ordem aleatória, como naqueles momentos finais das nossas vidas onde alguns sobreviventes afirmam ter revivido cenas do passado mais remoto até aos dias de hoje, em poucos segundos ou minutos.

Talvez por ser uma noite excepcionalmente quente, fê-lo relembrar os momentos de fantasias de infância, onde depois de jantar ia para o quintal ver e tentar apanhar pirilampos para metê-los num frasco, levá-los para casa e mais tarde ficar acordado e observá-los durante a noite. Era como um candeeiro em que eles se apresentavam aos olhos como múltiplas e minúsculas luzes, como estrelas num céu límpido que existia nesse frasco, um mundo em miniatura que o fazia sonhar enquanto ainda acordado.

Mais tarde e ainda na sua infância, lembrava-se que adormecia com um pequeno rádio a pilhas que o seu avô paterno lhe dera e que punha debaixo da almofada. Era um som melhor do que o do pequeno aparelho. O som parecia que era amplificado e a sensação era de estar mergulhado nesse mundo musical que era transmitido através das ondas da rádio. Dada essa paixão pela música, costumava sintonizar a Radio Caroline e era assim que conhecia todos os êxitos musicais da época. Estes pequenos momentos de felicidade, foram segmentos de tempo que Miguel nunca poderia esquecer.

Nessa época, as noites de Verão eram mais quentes e no mundo infantil, aparentemente mais longas. Quando crianças, os nossos olhos e percepções captam tudo de uma maneira diferente e proporcional à nossa estatura e adaptação ao ambiente que nos rodeia. Tudo nos parece grande e infinito e portanto tudo tem um outro significado. Mais tarde, essa escala de atribuição de valores e significados vai-se alterando de acordo com a nossa idade e com as circunstâncias que nos condicionam, portanto, contribuindo para o progresso ou deterioração dos nossos ideais e valores, finalmente, dos nossos ‘sonhos de criança’.

Foi exactamente com essas imagens dos tempos de criança que Miguel adormeceu mais uma vez, e ao mesmo tempo reviveu alguns momentos que passou na companhia dos familiares mais queridos. Nessa época, Miguel estava entregue aos cuidados da sua ama e dos avós paternos. Alexandra era a sua segunda mãe, aquela que na prática passava o tempo com ele e que tinha de aturar todos os seus caprichos e impertinências. Era um facto que Miguel sempre tinha considerado Alexandra como uma verdadeira mãe, até ao momento em que em tenra idade assistiu ao seu falecimento. Naquela altura os médicos vinham a casa dos pacientes, e os recursos hospitalares eram normalmente considerados em segundo plano. Esse contexto contribuiu para o falecimento do ser mais amado nos primeiros nove anos da sua existência.

Quando acordou na manhã seguinte recordou essas imagens, essas memórias onde estavam presentes a sua ama e o avô paterno, Rudolfo, aquele que foi o seu mentor e que de uma certa forma também substituiu o pai. Nos primeiros anos da sua vida, Miguel tinha sido criado e educado longe do cuidado e carinho dos pais, o que não impediu que a sua formação fosse dirigida para tudo o que era construtivo e positivo. Como compensação, tinha sido afortunado pela presença e apoio de outros familiares que lhe deram o amor e carinho necessários para superar essa lacuna importante da sua vida. Miguel encontrou-se a partilhar a vida dos avós, habitando na propriedade do Cônsul alemão em Portugal, e foi com a influência desse ambiente que os primeiros anos da sua existência passaram e moldaram o seu futuro.

Levantou-se lentamente deixando para trás o ‘mundo dos sonhos’ que tinha feito parte daquela noite de Verão, e foi directo para o quarto onde estava um velho álbum de fotografias. As páginas estavam prestes a descolar-se com o tempo e além disso eram bastante pesadas porque eram feitas em cartão de uma relativa espessura. Este álbum cuja capa era de um verde sombrio, datava de mais de sessenta anos e continha fotografias que representavam todo um período da história da sua família, imagens do passado na companhia dos entes queridos.

Após a sua partida de volta a Portugal, a mãe tinha deixado este álbum que ele tinha guardado junto com outras colecções de fotografias, despertando-lhe imagens há longo tempo adormecidas. Foi precisamente através desse álbum que Miguel se encontrou a reviver e a escrever sobre episódios e acontecimentos, o retorno às raízes que tinham influenciado a sua educação e formação, traduzindo quase na totalidade o que ele representava como pessoa.


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