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  • Carlos Miguel Pacheco

I - As Memórias de Rudolfo - 1956


´"SONHOS PERDIDOS NO TEMPO" - CAPÍTULO I

- Rudolfo era o condutor privado do Cônsul alemão e a sua esposa Dolores era a governanta da imensa propriedade que era sua pertença. A vida fez com que Rudolfo servisse este diplomata, e através das estreitas relações existentes entre eles, foi consolidada a sua situação profissional e familiar a um ponto em que o seu filho Ricardo, pai de Miguel, se tornou seu afilhado. Mais tarde, essa situação de estabilidade seria completamente alterada pelo desaparecimento desse diplomata.

Foi neste contexto de memórias provenientes de sonhos que Miguel concentrou os pensamentos. Essa reacção levou-o a transportar-se mentalmente aos tempos em que Rudolfo lhe contava histórias, pequenos episódios sobre o seu passado de criança, quando adolescente e adulto. Esse diálogo que existia entre avô e neto, contribuiu para o enriquecimento da formação de Miguel, uma vez que o conteúdo dessas conversas era extremamente evoluído em termos culturais e criativos. Rudolfo era um autodidacta que exprimia todos os pensamentos de uma forma profundamente rica em termos de expressão, como se aplicasse um toque de poesia nas suas palavras sem ser um poeta. Esta forma de falar e de escrever fez Miguel pensar muitas vezes que existem escritores que não sabem que são poetas, e que um texto pode ter um conteúdo mais poético do que um poema escrito por um poeta assumido.

Ainda se lembrava quando ele costumava ler-lhe certas cartas em voz alta e que dirigia a amigos e familiares. Para Miguel, era como o ouvir uma nova história quando era simplesmente a sua maneira de se exprimir, sem artifícios ou pretensões, mas meramente uma forma natural de analisar e descrever acontecimentos e comportamentos quotidianos. Foi através destes momentos que Miguel captou a riqueza, a essência, a alma da escrita, tudo aquilo que pode motivar uma pessoa a expressar preto no branco as suas ideias de uma forma extremamente construtiva e bela.

O que mais o impressionava era o contraste existente entre a aparente frieza do avô, e a beleza manifestada no conteúdo dos seus textos. Para quem não fosse conhecedor do passado de Rudolfo, seria impossível de identificar essa contradição, mas esse comportamento era perfeitamente compreendido pelo neto por ser o seu confidente. Todo este comportamento de Rudolfo serviu para que Miguel absorvesse mensagens que normalmente deveriam ser dirigidas e interpretadas por adultos, o que lhe proporcionou progredir muito precocemente nos seus pensamentos, introspecções de criança, e de adolescente.

Recordava-se claramente dos passeios que costumava dar na companhia do avô. Dois ou três dias por semana, após o dia de trabalho, Rudolfo convidava-o para uma caminhada no meio dos eucaliptos e contava-lhe episódios sobre o seu passado.

“Sabes meu querido Miguel, quando o avô era um pouco mais velho do que tu, experimentou momentos de muito sofrimento e de privações. Eram tempos muito difíceis, onde a maior parte da população não tinha meios para ter uma vida digna e confortável. Todos nós tínhamos que improvisar alguma coisa para conseguir ter alguns momentos de alegria e felicidade.” - dizia Rudolfo ao neto.

“É verdade, Avô? E como é que que vocês faziam se não tinham brinquedos?” - perguntava o pequeno Miguel.

“Tínhamos que usar a nossa imaginação para fazermos jogos de criança. Brincávamos com pedras de vários tamanhos por exemplo, as quais pintávamos de cores diferentes e cada um de nós tinha que atirar a sua pedra o mais longe possível. O jogador seguinte tentava partir a nossa pedra com a sua, e no fim do jogo quem ganhava era o que conseguia ficar com a sua pedra inteira.” - e ria-se ao descrever este episódio.

Rudolfo tinha nascido nos finais da década de 1890, numa época da História em que só a Monarquia e as classes sociais privilegiadas possuíam os meios necessários para ter uma vida digna. Na sua maioria, o povo tinha que trabalhar os campos ou executar profissões artesanais que eram minimamente remuneradas ou eram objecto de permuta de serviços ou bens. Para além desta condição social e económica, Rudolfo não tinha tido muita sorte com os seus progenitores. A sua mãe tinha falecido quando ele tinha poucos anos de idade e ficou a cargo do pai que tinha uma educação precária, aliada a um carácter de agressividade e violência física e verbal proveniente de um estado de demência que ele próprio desconhecia ou pretendia ignorar. Foi neste contexto que Rudolfo foi abusado física e emocionalmente nos anos mais importantes de formação como criança.

“O Avô não foi criado como tu, com todos estes luxos que te rodeiam. O carinho que eu te dou mais a tua ama Alexandra e os teus pais, são uma pequena fortuna que muitas crianças desejariam ter, mas infelizmente não é o caso. Tu és um verdadeiro felizardo e eu fico muito contente por isso.” - explicava Rudolfo.

De facto, Miguel ainda repetia nos dias de hoje muitas frases do avô que lhe tinham ficado na memória. Uma delas era que na vida tem que se ter sorte, uma vez que podemos ser os mais inteligentes, trabalhadores e honestos que se possa imaginar, mas sem sorte não fazemos nada.

“É muito importante termos sorte com os nossos pais, com o resto da nossa família, irmãos, etç. Mais tarde, temos que ter sorte com aqueles que escolhemos como nossos amigos e depois com aqueles com quem vamos constituir família. Sem sorte não se faz nada, meu pequenito!” - dizia Rudolfo, abraçando-o.

Miguel olhava sempre para ele com a maior atenção porque ele exprimia-se de uma tal maneira que parecia um conto de fadas, mesmo tendo em consideração os contextos difíceis e penosos que rodeavam os acontecimentos que às vezes ele lhe descrevia. Para além disso, Miguel também sentia nos olhos de Rudolfo, a admiração, o cuidado e o amor que ele tinha por ele quando lhe narrava todas aquelas histórias. Era como se a descrição desses acontecimentos, evitasse que acontecesse o mesmo ao neto.

“Quando eu tinha catorze anos de idade, o meu pai acordou-me numa dessas manhãs de Inverno quando chovia por todos os cantos e fazia um frio húmido trazido pelo nevoeiro matinal. Ainda me lembro da sua expressão e agressão verbal quando ele me acordou, ordenando-me que me vestisse o mais depressa possível pois estávamos atrasados para apanhar o comboio. Eu nem sabia que tínhamos um comboio para apanhar e fiquei muito surpreendido, o que me levou a pôr-lhe a questão sobre o nosso destino. Essa pergunta foi respondida imediatamente através de uma grande bofetada na cara!” - narrou Rudolfo.

Miguel nunca tinha sido maltratado por ninguém, mas tinha assistido várias vezes a episódios entre pais e filhos onde estes últimos eram punidos com maltratos. A propriedade do Cônsul alemão era populada por um grande número de pessoal que garantia a manutenção do domínio e alguns habitavam com as suas famílias em zonas dessa propriedade, tão vasta que era.

“Pois é, meu pequenito. O meu pai não era como o teu, carinhoso e afectuoso apesar de distante nos seus pensamentos. Ao contrário do teu pai, o meu não pensava porque provavelmente não tinha nada na cabeça excepto violência e destruição. Existem pessoas que se tornam pais por acidente e depois não sabem como devem tratar os filhos. Possivelmente também foram criados e tratados da mesma maneira, sem afecto e carinho e com uma ausência total de sentimentos, portanto, não sabendo agir de maneira diferente.” - continuou Rudolfo.

“E afinal para onde é que o teu pai te levou, Avô?” - perguntou Miguel.

“O que aconteceu foi uma coisa muito cruel e que eu não desejo a ninguém, nem ao meu maior inimigo, se é que tenho algum. O meu pai arrastou-me por um braço até à estação de caminhos-de-ferro e dirigiu-se ao postigo para comprar os bilhetes. Foi aí que eu conheci o nosso destino final, a cidade de Lisboa, o que me surpreendeu ainda mais.” - respondeu Rudolfo.

Rudolfo tinha nascido e sempre vivido em Leiria, uma cidade que se localiza na zona centro de Portugal. Para ele, a viagem para Lisboa constituía um acontecimento extraordinário, sobretudo tendo em consideração que era a capital do país. O que ele ignorava era o motivo que levava o pai a trazê-lo para tão longe da sua terra natal e do seu lar.

“Existem coisas que nos acontecem que nos marcam para toda a vida, Miguel. Na maior parte dos casos são acontecimentos que nos trazem sofrimento, os quais nunca seremos capazes de pôr atrás das nossas costas e simplesmente esquecê-los. Os bons momentos, esses sim, passam depressa e também se esquecem facilmente.” - continuou Rudolfo.

Miguel estava completamente intrigado sobre o que tinha acontecido ao avô e muito longe de imaginar o que realmente se tinha passado.

“Para mim foi excitante essa viagem porque nunca tinha saído da minha terra natal. Quando chegámos a Lisboa, o meu pai levou-me por ruas que para mim pareciam intermináveis. Caminhámos bastante tempo até ao ponto de eu ficar cansado, e durante o trajecto pensei várias vezes sobre a razão que me trazia à grande capital. Foi aí que deparei com um grande rio, o Tejo, que para mim parecia mais o mar do que um rio. Em Leiria existia o rio Lis, mas comparado com este era realmente uma pequena gota no oceano.” - Rudolfo falava e Miguel sentia que ele revivia todos esses acontecimentos. Era como se fosse um romance contado a uma criança que nunca mais se poderá esquecer.

“Continuámos a nossa caminhada ao longo do rio e em direcção a Belém. Num certo ponto, tomámos a direcção norte da cidade, afastando-nos do rio Tejo. Pouco tempo depois chegámos a uma rua onde os prédios eram velhos e lúgubres. A meio da rua entrámos num vão de escada e o meu pai pôs a mala que trazia na mão aos meus pés. Foi nesse momento que eu me apercebi que iria ali ficar abandonado e esquecido pelo meu próprio pai, e foi precisamente o que aconteceu!” - disse Rudolfo com um olhar que manifestava uma revolta interior bastante profunda.

Para Miguel esta situação era inconcebível, mas ouvindo-a da boca do avô e olhando para os seus olhos e a maneira como ele se expressava, levou-o rapidamente à conclusão de que não ouvia uma história para crianças mas sim a narração de factos reais que lhe tinham causado imenso sofrimento. Foi nesse momento que Miguel se abraçou a ele e se pôs a chorar.

Passados uns segundos, adulto e criança abraçavam-se e beijavam-se com os olhos cheios de lágrimas.


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