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  • Carlos Miguel Pacheco

O PREÇO DA ANARQUIA


SONHOS PERDIDOS NO TEMPO

Excerto do Capítulo XIII - O Preço da Anarquia

Rudolfo arrumou as suas coisas depois de agradecer ao patrão pela preocupação e consideração que ele lhe tinha dirigido. Era meio da tarde e dirigiu-se ao Terreiro do Paço, como era hábito, parando várias vezes durante o caminho. Naquele dia, por estranho que pareça, sentiu dentro de si uma estranha sensação de mal-estar, como um pressentimento de que alguma coisa de mal se iria passar. Para bem dizer, já tinha acordado com essa sensação e até tinha pensado manifestá-la a Toni, mas que acabou por esquecer devido ao trabalho que o esperava naquela madrugada do mês de Fevereiro.

Sempre que tinha oportunidade deslocava-se ao Terreiro do Paço onde mergulhava mais uma vez no seu mundo de imaginação. Fascinava-o a grandiosidade daquela praça rodeada de edifícios amarelos percorridos com arcadas, num dos quais ficava o ‘Café Martinho da Arcada’, um dos locais preferidos do célebre escritor e poeta Fernando Pessoa. Para Rudolfo, o facto de pisar os mesmos passeios e o local que o autor igualmente frequentava, tinha uma importância fundamental, o que frequentemente aludia a José como se fosse uma referência que, aos olhos daquele, jogasse a seu favor. Independentemente da amizade existente entre os dois, não podia evitar de pensar que José tinha tido a possibilidade de estudar e mais tarde ter um diploma, enquanto ele, apesar da cultura trazida pela leitura, nunca passaria de um autodidacta. Uma vez até pensou em levar os utensílios de trabalho como engraxador para a entrada do café. Talvez assim conseguisse travar conhecimento com o famoso escritor.

Costumava sentar-se perto do Cais das Colunas e inclusivamente assistia esporadicamente ao hábito que algumas pessoas tinham de se banharem nas águas do Tejo. Daí, observava a amplitude da Praça que era igualmente acedida pelo grandioso Arco Triunfal da Rua Augusta que conduz à Baixa Lisboeta. Alguns artistas preenchiam aquele ambiente único que fazia parte da História de Portugal, um cais diplomático onde eram recebidos Chefes de Estado e Famílias Reais, um local que simbolizava as tradições da Monarquia Portuguesa e igualmente um passado de catástrofe aquando do terramoto de 1755.

As gaivotas rondavam o Cais das Colunas. A essa mesma hora, na outra margem do Tejo, no Barreiro, a família Real apanhava o vapor que os iria conduzir ao Terreiro do Paço. Para Rudolfo, cansado e absorvido pelo trabalho e pelas suas actividades políticas e intelectuais, aquele era um dia como os outros, pelo que esperava que nada fugisse à rotina diária da vida lisboeta. Naquele dia foi para o meio da Praça e sentou-se virado para o rio aos pés da estátua de D. José I, tencionando observar os transeuntes e descontrair-se um bocado.

Passados uns minutos distinguiu o vapor que se aproximava da Estação Fluvial Sul e Sueste, onde se encontrava um coche aberto aguardando a Família Real e rodeado de batedores e membros do Governo, entre eles João Franco e um familiar do Rei, o Infante D. Afonso. Na sua imaturidade, era como como se fosse mais um barco que transitava entre as margens do Tejo.

Mergulhado nos pensamentos, perguntava-se sobre a razão da intensidade que tinha revestido a actividade do grupo anarquista durante os últimos dias. Realmente tinha sido o período mais activo desde que tinha começado a sua colaboração naquele grupo e este facto não lhe era despercebido.

O vapor acostou e a Família Real, depois de uma breve cerimónia de recepção, instalou-se no coche que os esperava, o que originou que os passantes começassem a gritar: “É o Rei!”. Acompanhando a carruagem e servindo de escolta ao Rei e à sua família, seguia um oficial a cavalo. Finalmente, Rudolfo focou a sua atenção para aquele acontecimento que revestia personagens reais, o que para ele era como entrar num mundo de sonhos e ao mesmo tempo mais uma aventura. Os transeuntes continuavam a gritar - “É o Rei, é o Rei!” - pelo que ele se apercebeu da importância de tudo aquilo que ele estava a presenciar.

Na carruagem, o Rei acenava e sorria aos transeuntes que percorriam as arcadas e os passeios, retribuindo as saudações que a população lhe dirigia. Rudolfo tentou aproximar-se o mais possível da carruagem Real, correndo e seguindo-a em direcção da Rua do Arsenal, esperando que a sua presença fosse apercebida pelo Rei. Sim! Era um facto que apesar de estar ao corrente dos problemas sociais oriundos do contexto político da época e em que o Rei era directamente responsável, Rudolfo não se dissociava da sua imagem, símbolo da monarquia e da realeza, imagens que traduziam a nobreza que deveria ser mantida pelos seus representantes. Um Rei era um Rei, independentemente da eventual negligência que pudesse revestir as suas funções como Monarca do Estado, como nos sonhos e histórias para crianças em que tudo é belo no mundo dos reis, rainhas, príncipes e princesas. Apesar de ter experimentado um passado de sofrimento, Rudolfo ainda era um jovem com esses sonhos bastante presentes no espírito e que animavam a sua vida, como acontecia com os jovens da mesma idade.

A um certo momento apercebeu-se que um homem de barbas se tinha posicionado atrás da carruagem do Rei, pondo-se de joelhos e apontando uma carabina na direcção da Família Real. Rudolfo ficou perplexo e não acreditava nos seus olhos. Parou subitamente quando ouviu o tiro que foi disparado e que matou instantaneamente o Rei D. Carlos. A partir desse momento, desencadeou-se um tiroteio que crivou a carruagem Real de balas. Tudo se tinha desenrolado num espaço de segundos e Rudolfo encontrou-se perto do fulcro do assassinato do Rei e do filho, o Príncipe D. Luís Filipe.

Tiros e gritos percorriam as ruas, e Rudolfo, em pânico, tentou refugiar-se numa das arcadas. Um segundo tiro foi disparado pelo primeiro regicida, sempre visando o Rei e mais à frente um segundo personagem sai das arcadas a correr em direcção ao coche, conseguindo colocar-se ao nível dos passageiros, e volta a alvejar o Rei.

A adrenalina corria nas veias de Rudolfo superando o pânico que se tinha apoderado dele e dos transeuntes, dando-lhe ao mesmo tempo a coragem de espreitar e observar os acontecimentos, mesmo com o risco de ser atingido pelo tiroteio. A inconsciência inerente à sua idade provocou-lhe a bravura de se imiscuir nos acontecimentos sem pensar que poderia ser confundido com os regicidas.

Foi nesse momento que viu a Rainha levantar-se com um ramo de flores na mão, tentando agredir o segundo regicida. O Príncipe também se levantou e para proteger a mãe, disparou uma série de tiros sobre o assaltante fazendo-o cair da carruagem, mas este acto iria torná-lo alvo do tiroteio que os circundava. A Rainha acaba por ver o filho ser atingido por uma bala mortal que lhe atravessa o rosto.

Segundos após, assiste à intervenção de um soldado que luta com o primeiro regicida que acabou por feri-lo numa perna e pôr-se em fuga, mas nesse preciso momento foi perseguido por um oficial a cavalo que já tinha imobilizado o outro revoltoso. Com a sua última bala ainda consegue ferir o oficial, mas finalmente é atingido por um golpe de sabre que o neutraliza completamente.

A confusão era generalizada. As forças da ordem acabariam por abater os regicidas no local alguns minutos depois destes trágicos acontecimentos. Rudolfo viu a carruagem real partir para a Rua do Arsenal, não antes de alguns tiros ainda soarem naquela tarde do mês de Fevereiro de 1908.

Extremamente enervado com tudo aquilo que tinha presenciado, voltou a correr para o Cais de Sodré. Enquanto corria a passos largos, pensou mais uma vez nos maus tratos a que tinha sido submetido pelo pai e concluiu que, por muito duros que tivessem sido, não se comparavam com um crime daquela natureza, sobretudo porque ele nunca tinha tido um contacto tão próximo com uma situação que implicasse a morte violenta de alguém.

Durante o caminho ocorreram-lhe mil e uma ideias no espírito, repetições das imagens a que tinha assistido e o som agudo dos disparos, conjuntamente com os gritos horríveis de pavor que provinham de todos os lados, um barulho ensurdecedor que nunca mais o iria abandonar, nem que fosse em pesadelos.

À sua volta as gaivotas continuavam a voar, as crianças continuavam a banhar os pés no rio como se nada se tivesse passado, como um quadro pintado em tela revelando a pureza dos pássaros a voar e das crianças aquando dos movimentos, aquando dos gritos de alegria e felicidade por brincarem umas com as outras. Todo este cenário contrastava profundamente com os gritos de terror, desespero e sofrimento que eram ouvidos a algumas dezenas de metros.

Era como se a beleza da natureza e a pureza dessas crianças traduzisse a vida como a idealizamos, mas colidisse com a morte causada pelo mundo dos adultos e ele se encontrasse no meio desses dois extremos. Rudolfo cruzava-se com a multidão que corria no sentido inverso, atraídos pela curiosidade e certamente apercebendo-se que alguma coisa de grave se tinha passado.


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