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  • Carlos Miguel Pacheco

O NOIVO


Chamavam-lhe "o noivo". Miguel presenciava a reacção dos passageiros quando ele chegava ao cais da estação de caminhos-de-ferro. Os comentários e o riso dos presentes revestiam-se de um sarcasmo e de um cinismo absolutos que fizeram com que Miguel se interessasse por esse personagem. Apresentava-se efectivamente vestido como se fosse para um casamento; um fraque por cima de uma camisa branca muito bem engomada, colete preto inteiramente abotoado, sapatos de verniz sobre meias brancas, nunca esquecendo um pequeno ramo de flores para presentear a "noiva".

O seu rosto dava sinais de uma felicidade constante aquando no comboio com destino a Lisboa. Sentado no seu canto, perto da janela, nunca falava com ninguém, no entanto, estabelecendo um diálogo com um outro ser imaginário que ocupava o seu espírito.

Um certo dia, o destino fez com que Miguel se sentasse à sua frente. O comboio não levava muita gente, talvez por ser um pouco mais tarde e a meio da manhã. Miguel não podia evitar observá-lo, os seus gestos e comportamento, tentando decifrar as palavras que ele pronunciava em voz baixa.

Para seu espanto, num determinado momento, o "noivo" fixou-o nos olhos e sorriu, como se no íntimo sentisse o interesse de Miguel pela sua pessoa. Talvez porque Miguel demonstrava uma atitude que revelava respeito, mesmo apreço, em contraste com o escárnio e a troça manifestadas pela maior parte dos passageiros, o que lhe inspirou confiança. No entanto, voltou ao seu mutismo habitual, misturado de períodos de diálogo em murmúrio voltado para a janela.

Nesse dia, Miguel não resistiu e seguiu este personagem. A uma certa distância, subiram a Calçada do Carmo até chegarem ao Chiado, onde o "noivo" entrou na Basílica dos Mártires. Nesse local, recuado da sua vista, Miguel presenciou aquele personagem a simular o seu próprio casamento, falando com entidades invisíveis, gesticulando os braços, sorrindo, até ao momento em que ficou em pé, estático. O seu comportamento era estranho. A sua alegria, felicidade e euforia, transformou-se numa expressão de sofrimento e desespero. Gritava: "Esperem. Ela está a chegar, ela está a chegar. Não, não se vão embora! Eu sei que ela vai chegar. Eu sei!".

Foi nesse momento que elementos da Basílica se lhe dirigiam com palavras de conforto e o acompanharam até à entrada, aconselhando-o a voltar a casa e descansar. No fim, despediram-se com um "até amanhã, Pedro!" Foi assim que Miguel soube que o "noivo" se chamava Pedro.

Miguel preparou-se para sair, não sem abordar um dos membros da Basílica que tinha acompanhado o "noivo", manifestando a sua curiosidade, ao que foi respondido. Tinha sido naquela Basílica, Domingo, numa tarde de Primavera que Pedro, o "noivo" tinha ficado à espera da sua noiva, aquela que ele tinha elegido no seu coração e escolhido para ser a mãe dos seus filhos. A sua paixão por ela era imensurável e nesse dia iria realizar-se o maior sonho da sua vida. A noiva estava atrasada, o seu carro circulando a alta velocidade para recuperar o tempo perdido. O camião surgiu de repente, não dando tempo ao condutor de evitar o impacto. A noiva morreu instantaneamente quando o carro mergulhou no chassis do veículo pesado.

Nos dias seguintes, Miguel voltou a encontrar o "noivo" na estação de Queluz. Voltou a observar as reacções dos presentes, aqueles que troçavam daquele personagem sem tentarem minimamente compreender a razão do seu comportamento. Revoltava-se contra a sua ignorância, a sua falta de humanismo e compaixão em prol da crítica maldosa que alimentava os seus espíritos, a pobreza que reinava nas suas almas. No íntimo, tinha quase a certeza de que nenhum deles seria capaz de ter sentimentos tão profundos por alguém. Talvez mesmo não conseguissem compreender o que essa palavra significa.

Sempre que podia, Miguel sentava-se à frente do "noivo". Sorria para ele, e o "noivo" parecia que o compreendia. Semanas mais tarde, ao subir a Calçada do Carmo, o "noivo" voltou-se para trás e esperou por ele. Sem falar, caminhou ao seu lado até entrar novamente na Basílica. A partir desse dia, Pedro, o "noivo" começou a falar-lhe no comboio até que um dia apareceu com um outro fato.

Foi também nesse dia que os passageiros habituais ficaram mais sérios, mudos, talvez conscientes da sua imbecilidade, enquanto Pedro e Miguel conversavam e riam.


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